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São Paulo, 05/05/2024

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    O preconceito por trás do “abuso de poder religioso”

    Afronta a Constituição

    O preconceito por trás do “abuso de poder religioso”

    O preconceitopor trás do “abuso de poder religioso”
    A discussãorecorrente nas últimas eleições, em torno do denominado “abuso do poderreligioso”, voltou à cena após voto do Min. Edson Fachin no TSE, no qualpropôs, para o pleito de 2020, o reconhecimento de um tal “ilícito” como “abusode autoridade”. O “culpado” seria punido até com a cassação do mandato.

    O ministro tem vasto conhecimento jurídico e brilhante carreira acadêmica, masaté os mais eruditos se equivocam. Somos forçados a divergir, vez que a tese do“abuso de autoridade religiosa” não tem absolutamente nenhum respaldo nalegislação. Simples assim.
    O crime de “abuso de poder religioso” afronta a Constituição, que tem como umde seus fundamentos, no art. 1º, o pluralismo político e inclui entre osdireitos e garantias individuais, no art. 5º, que “ninguém será privado dedireitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica oupolítica”. A Carta também adota o modelo da colaboração ao vedar que o PoderPúblico crie “distinções entre brasileiros ou preferências entre si”, no incisoterceiro do art. 19.
    A tese está amparada em uma visão equivocada, que tenta excluir as pessoas defé do debate público. O Estado é laico, não laicista. Logo, não se pode querercolocar quem tem fé e a assume para fora da arena pública.
    Em 2017, vale lembrar, o próprio TSE (RO nº 265.308 – RO) decidiu que nem aConstituição e nem a legislação eleitoral contemplam a figura do “abuso dopoder religioso”, porque, afinal, o Congresso Nacional jamais criou essa figuraespecífica. Se o Judiciário criasse esse crime eleitoral, haveria um ativismoinaceitável, com mais uma invasão das competências do Legislativo – além dodesrespeito ao texto constitucional.
    Além disso, a tipificação do ilícito eleitoral em face somente dos religiosostornaria flagrante uma discriminação negativa, que podemos chamar, neste caso,de perseguição religiosa. Não há debates dessa natureza aplicada sobre outrossetores da sociedade. Ainda que possa haver excesso e até mesmo coaçãopsicológica para direcionar os votos dos eleitores de outros grupos,dificilmente será levantada hipótese de “abuso de poder ambientalista”,“ruralista” ou “sindicalista”. Nessas situações, a influência é considerada legítima,como o simples exercício da liberdade de pensamento e convicçãofilosófica.
    Se os religiosos fossem proibidos de falar sobre votar em quem compartilha seusvalores, o TSE teria que vetar manifestações de artistas, jornalistas,jogadores de futebol, intelectuais, professores e tantos outros grupos. Ouseriam os religiosos uma categoria inferior de cidadãos? Por que só alguns têmque ficar amordaçados?
    Todos podem falar sobre política, menos os religiosos? Isso ocorre porque sãoimaturos, são a escória, são incapazes de abordar temas complexos efundamentais para o país? Isso chega a soar ofensivo. Quem quiser criar umaigreja é livre para tanto. Mas, no Brasil, inexiste previsão para alguém querercontrolar ou censurar as igrejas alheias. A quem interessa calar quem tem fé?Quem quer disputar votos sem debate? Ou será que, na falta de credibilidade eargumentos para obter os votos de pessoas religiosas, alguns preferem “resolvero problema” impedindo a voz de quem pensa diferente?
    Aliás, essa tal “coação moral de natureza eleitoreira” é muito mais frequenteem universidades e shows multitudinários do que nas igrejas. O EstadoDemocrático de Direito não admite tratamento diferente para liberais econservadores, sindicatos e igrejas, artistas e ministros religiosos. Isto simseria antidemocrático e configuraria um Estado fascista. A defesa do “abuso dopoder religioso” é fundamentada por uma visão distorcida e preconceituosa sobreas pessoas religiosas, como se fossem acríticas e facilmente manipuladas porseus líderes. Também é uma ideia que, de forma um tanto arrogante, quer tutelaras pessoas, como se o Estado, através de seus “sábios”, tivesse mais capacidadeque as pessoas do povo. É uma ideia que despreza a autonomia dosindivíduos.
    Michael Sandel, professor de Harvard, observou que pessoas encaram a disputapolítica a partir de suas visões de mundo. De forma legítima, alguns cidadãosextraem sua visão de mundo a partir da religião. Segundo Sandel, embora sejaaparentemente uma medida de tolerância pedir aos cidadãos democráticos queabandonem suas convicções morais e religiosas ao entrar na esfera pública, issoevidencia, contrariamente, uma falsa neutralidade na discussão de questõespúblicas. De acordo com esse autor, “em vez de evitar as convicções morais ereligiosas que nossos concidadãos levam para a vida pública, deveríamos nosdedicar a elas mais diretamente – às vezes desafiando-as e contestando-as, àsvezes ouvindo-as e aprendendo com elas”.
    O próprio Supremo Tribunal Federal, na ADPF 548, garantiu a livre manifestaçãode ideias em universidades durante período eleitoral, cassando atos queproibiam o debate no ambiente acadêmico. Por que, dentro das igrejas e dostemplos de qualquer culto, tal garantia não pode ser aplicada? Estudantes e professoresuniversitários têm mais direitos do que os religiosos que não participam daacademia? A fé faz de alguém um cidadão de segunda classe?
    O TSE não pode legislar, isso é antidemocrático. Só quem se submeteu ao crivodo voto popular pode criar normas gerais. Onze ministros, mesmobem-intencionados, não podem querer ocupar o lugar de 513 deputados e 81senadores, os quais, eles sim, têm legitimidade para criar leis. No Congressohá negociação, debate e representatividade social que inexiste no STF. Há mandatos,os quais garantem maior respeito ao povo. Por fim, há controle posterior, o quegarante o equilíbrio dos Poderes e a chance de correção de eventuais erros.Quando os juízes legislam, aí sim é que temos abuso de autoridade.
    Os limites eleitorais, obviamente, devem ser respeitados e coibidas aspropagandas irregulares dentro dos templos, eventual abuso de poder econômico edos meios de comunicação, quando usados pela religião. Mas isso deve ser feitodentro das regras eleitorais, não através da criação de um tipo específico quecriminaliza a política no âmbito religioso.
    O voto do ministro parece querer suscitar a velha e ultrapassada afirmação deque política e religião não se misturam. Desmond Tutu disse que “não háafirmação mais política do que dizer que política e religião não se misturam”.O Judiciário não pode criar lei, e, se pudesse, jamais uma que discrimina eacaba por perseguir quem tem valores religiosos. Isso violaria a Constituição eo art. 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
    Esperamos, respeitosamente, que o TSE não queira tornar “lei” esta equivocadatese acadêmica, que não sobrevive à luz da própria Lei Magna, o que seriaativismo equivocado, discriminatório e inconstitucional.
     
    William Douglas, Professor e Juiz Federal.
     





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